Li no jornal “O Gaiato” de 15 de janeiro que, na semana seguinte, haveria uma reunião de todos os padres da Obra da Rua com o nosso bispo e o seu auxiliar D. Armando, na qual “vamos tentar, com ajuda do Espírito Santo, descobrir o que Deus está a sugerir à nossa Obra da Rua”, na convicção de que “estes dias vão ser a primeira pedra de uma renovação fruto do diálogo fraterno dentro de um espírito sinodal”. Como não conheço o resultado da reunião, fico mais à vontade para deixar umas reflexões.

Por Ângelo Soares

Em primeiro lugar, uma declaração de interesses: tenho uma enorme admiração pela Obra da Rua, por todo o Bem que fez e continua a fazer quer em Portugal quer noutras paragens! Dói-me ver que as suas enormes e singulares capacidades não são aproveitadas e são até hostilizadas por visões redutoras e centralistas, de fidelidade cega a regulamentos feitos com os olhos nos tampos das secretárias ou nos ecrãs dos computadores muito mais do que fitados naqueles que carecem da nossa atenção e apoio.

Acredito que Pai Américo foi a mão misericordiosa de Deus junto dos gaiatos e doutros pobres durante a sua peregrinação neste mundo e continua a sê-lo através dos seus continuadores. Tarda que a Igreja o reconheça plenamente, escutando a voz do povo que já o canonizou. Pai Américo soube ler as realidades do tempo em que viveu, soube enfrentá-las com eficácia e soube afrontá-las e derrubá-las sempre que necessário. Por isso me parece que a grande pergunta que hoje se deve pôr na Obra da Rua é “o que faria Pai Américo se estivesse aqui e agora?”. Essa é a fidelidade desejada para o carisma da Obra, sem saudosismo nem vitimização ou isolacionismo, lendo e interpretando hoje os sinais dos tempos com realismo e com audácia profética, continuando a não ter medo de ser hospital de campanha e de sujar as mãos naqueles que muitos consideram lixo da sociedade.

Mas é bom que a Obra da Rua seja também interpelação para a comunidade diocesana. Precisamos de ser uma Igreja menos dourada e carmim e mais suja, menos templo e mais terreno, menos organismo e mais comunhão, da qual se possa dizer como nos primórdios “Vede como eles se amam”!

Inspirações como o Calvário ou o Património dos Pobres, devidamente lidas à luz do tempo em que vivemos, poderiam (deveriam!…) tocar e mobilizar as nossas comunidades paroquiais e recentrar as suas prioridades pastorais, como senti e aprendi na paróquia do Carvalhido que me acolheu há sessenta anos, onde colaborei cerca de quarenta e que me fez muito do que sou.

Porque não, por exemplo, incluir na formação dos nossos ministros ordenados um tempo de vida na Obra da Rua (não uma visita de estudo!) que leve a mergulhar na realidade da pobreza, da doença, da miséria, da orfandade e da dor? Ter atualmente um cónego do nosso cabido a trabalhar na Obra não poderá ser um sinal das prioridades que Deus pede ao nosso clero?

E nas escolas ditas católicas, não valeria a pena trocar estratégias de caça à nota e ao ranking por práticas pedagógicas inspiradas em Pai Américo, conduzindo a mais e melhor educação para a responsabilidade pessoal, para o trabalho, para a autonomia, para a solidariedade?

Nas nossas casas, nas famílias que somos, que bom seria fazer como Pai Américo, incutindo nos nossos filhos o sentido dos deveres familiares, da caridade para com os irmãos, pais e avós, chamando-os a participar na vida e nas tarefas da família, em vez de lhes dar tudo, tudo desculpar e superproteger.

Termino com outra declaração de interesses. Como voluntário da Associação Ser Mais Valia, estive na Casa do Gaiato de Moçambique e apoio de diversos modos alguns dos rapazes de lá que estão a frequentar o ensino médio ou superior. Custa-me ver a desvinculação desta Casa em relação à Obra, por razões complexas, com o risco de progressivamente perder a marca de Pai Américo, que para já continua muito presente na educação daqueles gaiatos. Acredito que o Espírito Santo iluminará caminhos de reintegração plena na Obra da Rua, respeitando-se o carisma desta, mas compreendendo também que são diferentes as realidades sociais que lá se vivem. Mais uma vez, a questão é a mesma: “o que faria Pai Américo?”.